quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Lembranças

Um dia daremos boas risadas de nosso passado, daremos gargalhadas deliciosas lembrando as dificuldades que passamos, nossos apuros nos darão muitos momentos de alegria nas rodas de conversa, teremos assunto para todos os reencontros de amigos do passado lembrando somente da incerteza diária que tínhamos.
Fico sonhando com o dia em que tudo isso que vivemos hoje serão nossas lições de vida para nossos filhos, sobrinhos e netos.
Quando sentarmos com os amigos mais antigos, iremos lembrar-nos das vezes que faltava dinheiro pra lanchar, das vezes que tivemos que andar grandes distancias a pé, das vezes que ficamos em casa sem ter como ligar pros amigos, daquele tempo onde o nada era freqüente, e mesmo assim éramos felizes sem saber.
Lembro de dias que a fome apertava e o dinheiro que estava no bolso era o da passagem pra trabalhar no dia seguinte, lembro de dias que o dinheiro da janta era gasto em cerveja numa conversa com um amigo que precisava desabafar, lembro disso e fico sorrindo de felicidade por ter enfrentado certas dificuldades e sem pensar em desistir.
Jogar futebol era como fazer mágica com o salário mínimo, nos mercados perto de casa a bola era muito cara e a grana não dava, o que tínhamos era o suficiente pra comprar nos hipermercados(onde costumava ser mais em conta), mas e a passagem? Só havia uma saída: caminhar a pé por cinco quilômetros porque não daria pra pagar a passagem e comprar a bola, e como prevê uma lei de Murphy: "Nada é tão ruim que não possa piorar." E pra honrar a frase, a chuva caia o caminho todo, ou o sol não perdoava, ou o tênis rasgava, sempre tinha alguma coisa pra atrapalhar.
A bebedeira diária sempre foi um capítulo à parte, pra isso a correria era intensa e sempre dava certo. Todos os dias tinhamos que conseguir completar dois reais pra comprar uma Pedra90 e um Pocotó, santas moedinhas...
E a namorada? Ah essa parte era difícil, ou lanchava com ela ou comprava camisinha e só um dos dois lanchava, no fim das contas o tesão que ela me proporcionava falava mais alto, comprava seis camisinhas e uma bebida, o programa noturno já estava armado e a fome era esquecida no primeiro copo e na intensidade da união das peles, só sendo lembrada na solidão pós-sexo quando a namorada ia embora.
Na hora de comprar presentes a coisa ficava mais feia ainda, ralava de "oreia" em algum lugar pra tentar ganhar o suficiente para o presente, mas sempre tentei agradar a namorada principalmente (apesar de ser péssimo em dar presentes e fazer surpresas), lembro de ficar semanas pensando em alguma coisa, e na hora "H" acabava perguntando pra ela o que ela queria ganhar.
Uma das horas mais difíceis era quando eu estava sozinho em casa e não tinha comida pronta, ai danava tudo; Sem grana pra comprar comida (se comprasse não sobrava pra bebida), e sem nenhuma habilidade na arte de cozinhar, era fome na certa, mas serviu pra descobrir que biscoito, miojo e pão não servem de alimentos, só um enche bucho básico.
Hoje as coisas não são ótimas, mas também não preciso mais passar por maus bocados sempre que penso em me divertir, hoje posso sair e tomar uma cerva, sem precisar separar o dinheiro da passagem em outro bolso, posso chamar uma pessoa pra lanchar sem me preocupar, mas também não posso exagerar e viajar sem pensar em quanto preciso pra ir e voltar. Normalmente só se aprende mesmo quando erramos, mas não que isso seja algo ruim, passar nove horas dentro de um carro mal vestido com fome com sede e sem nenhum centavo dentro do bolso (literalmente), à mais de cem Km de casa foi algo bem proveitoso e divertido.
Os amigos são essenciais nessa fase, e ter o amor de uma mulher é algo que nos ajuda à ter forças pra melhorar de vida, afinal se não fosse pela mulher amada eu não teria pensado em crescer financeiramente nunca, pra falar a verdade a vontade de casar com ela e ter filhos foi o ponto mais forte, hoje eu penso em poder ter meu dinheiro por vários motivos, mas mesmo assim minha motivação é a mesma...
Ah! Quase esqueci, e as loucuras pra conseguir uma grana, malabares no sinal, tocar violão junto aos Hippies que vendem bijuterias, jogar futebol apostado sem ter dinheiro para apostar, fazer favor para vizinhos, fazer planos mirabolantes de vender frango assado no meio da festa de fim de ano pra tentar ganhar dinheiro e voltar pra casa, são coisas válidas a nível de ter o que falar para os outros nas bebedeiras noturnas.
Eu me lembro das coisas que meus amigos me disseram que já fizeram pra ganhar dinheiro tem um que já vendeu as telhas de casa, tem outro que já vendeu entradas pra verem sua irmã tomando banho e quando foram ver era eu e eu não sabia de nada (mas bebemos um fim de semana todo com a grana), conheço um que vendeu várias entradas para o porão do rock na época que era de graça, já vendemos camisinhas que o governo distribui de graça por dois reais a unidade, isso sem contar das latinhas de cerveja por um real (só não avisava que estavam vazias), uma vez vendemos pregos em uma invasão e o negócios foi tão próspero que vendemos fios passando por canos e até madeirite, já vendemos cerol, giz de escola como giz que mata barata, foram tantas coisas que até pesa a consciência.
Teve uma vez que na tentativa de agradar a namorada e sem dinheiro pra pagar um restaurante eu fui cozinhar um arroz instantâneo e fritar um ovo, mas pra ser o inovador da parada eu fiz sem colocar sal e nem tempero algum, resultado do jantar romântico: um arroz muito duro e quase cru (e era integral), um ovo muito ruim com a gema crua (não mole e gostosa), e tudo sem sal e sem tempero algum e novamente a fome imperou na hora do sono (pelo menos na minha), ainda acho que a namorada atacou a cozinha de casa antes de dormir.
Hoje eu posso brincar com isso tudo, eu posso me divertir horrores relembrando dessas coisas, posso fazer com que tudo isso pareça motivo pra risadas, e um dia espero poder rir do meu presente e fazer com ele o que hoje faço com meu passado.